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Caso Evandro

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Caso Evandro
Local do crime Guaratuba, Paraná
Data Abril de 1992
Tipo de crime Desaparecimento e morte
Vítimas Evandro Ramos Caetano

O Caso Evandro refere-se à morte do garoto Evandro Ramos Caetano, em abril de 1992, na cidade litorânea de Guaratuba, no Paraná.[1]

O caso teve grande repercussão na imprensa nos anos 1990 e voltou a ganhar destaque após o podcast produzido pelo jornalista Ivan Mizanzuk em 2018 levar à absolvição de todos os condenados, que haviam confessado o possível crime sob tortura. Segundo o canal especializado Operação Policial, trata-se de "um dos maiores erros da Justiça brasileira".[2][3]

"No momento você não consegue pensar, você está sendo torturada, escutando o que tem que falar e, se você não souber exatamente, é torturada novamente. Eu não queria falar aquilo. Se eu errasse era choque elétrico ou afogamento. Se fizer perícia no meu corpo, eu tenho marcas de tortura até hoje", disse Beatriz Abagge, uma das condenadas.[4]

Devido às suspeitas sobre Beatriz e sua mãe, Celina, o caso também ficou conhecido como "As Bruxas de Guaratuba".

O caso permanece sem solução até hoje, agosto de 2022.

Contexto

O Paraná vivia, entre os anos 1980 e 1990, uma onda de sumiço de crianças e, nesse contexto, exatamente, 28 crianças desapareceram, incluindo Leandro Bossi, que havia desaparecido na mesma cidade em fevereiro antes. Leandro só foi identificado definitivamente em junho de 2022, após novas análises de DNA em restos mortais encontrados em 1993 foi i.[5] [4]

Desparecimento e morte

Evandro, então com 6 anos, desapareceu no dia 6 de abril de 1992, após sua mãe permitir, pela primeira vez, que ele fosse sozinho para casa do colégio onde estudava e ela trabalhava, para pegar um brinquedo e um lanche. A escola ficava a apenas 150 metros da residência. Vinte minutos depois, a mãe, no entanto, percebeu que o filho não havia voltado, mas acreditou que ele poderia estar na casa de parentes, que moravam por perto. Ela só percebeu que havia acontecido algo errado ao voltar para casa e encontrar a porta chaveada, o lanche e o brinquedo em cima da mesa.[3]

No dia 11 seguinte, lenhadores encontraram um corpo de uma criança num matagal, sem vários órgãos, como o couro cabeludo, as vísceras e parte das mãos e pés. O pai de Evandro posteriormente reconheceu o corpo por uma mancha que o menino tinha nas costas e por indícios na cena: as chaves da casa e a cueca da criança.[3][4]

Investigações

Após o corpo ser reconhecido, um primo da família e ex-investigador da Polícia Civil, Diógenes Caetano dos Santos Filho, passou, por conta própria, a fazer uma investigações paralela aos policiais civis, levando ao que o Operação Policial chamou de uma "série de informações desconexas".[3]

Após dois meses de investigações, baseado em especulações, Diógenes criou um dossiê onde acusava Celina Abagge, então primeira dama do município, e sua filha Beatriz Cordeiro Abagge de terem usado o corpo do menino para um ritual satânico. Ele também citou os nomes de Osvaldo Marcineiro, pai de santo, Vicente de Paula Ferreira, pintor que morreu na prisão de câncer em 2011, Davi dos Santos Soares, artesão, Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli dos Santos como parte do grupo, que devido às suspeitas sobre as Abagge foi chamado de "As Bruxas de Guaratuba".

Ele enviou o relatório ao Ministério Público, o que ocasionou mudanças nas investigações, quando a Polícia Civil foi afastada do caso e substituída pelo Grupo Águia da Polícia Militar. "A elite da Polícia Civil do Paraná, o chamado Grupo Tigre, foi enviada até Guaratuba para investigar o desaparecimento de Evandro. Após meses de investigação, a Polícia Civil ainda não havia conseguido apontar possíveis responsáveis. Acreditando que a Polícia Civil não estava fazendo seu trabalho de forma devida, o Ministério Público solicitou que grupo de inteligência da Polícia Militar (PM) passasse a investigar o caso. Assim, chegou a Guaratuba o Grupo Águia, comandado pelo então capitão da PM Valdir Copetti Neves, que rapidamente apontou sete culpados pelo crime", reporta o portal especializado Conjur.[3][6]

Copetti Neves, segundo o Operação Policial, tinha obsessão pelo número sete, já que seu sobrenome Neves, se lido ao contrário, é Seven, que significa sete em inglês. Devido à esta obsessão, ele teria feito questão de acusar sete pessoas.[3] Copetti morreu executado com 13 tiros no final de outubro de 2018 em Ponta Grossa.

Posteriormente, descobriu-se que as Abagge eram desafetos de Diógenes, por questões pessoais - Celina teria causado a separação dos pais de Diógenes - e políticas - os Abagge eram oponentes do pai de Diógenes, que também já havia sido prefeito de Guaratuba.[3][4]

O fim das investigações

Após as investigações, a promotoria pública do Paraná indiciou Beatriz e sua mãe, Celina, como mentoras do sequestro e morte de Evandro, alegando a utilização da criança num ritual de magia negra (crime ritual) para obtenção de benefícios materiais junto a espíritos satânicos.[7][8]

Julgamentos e penas

Em 23 de março de 1998, Beatriz e Celina foram julgadas pela primeira vez, em processo que é o mais longo júri da história da justiça brasileira (34 dias de julgamento). No veredito foram consideradas inocentes. Em 1999 o júri foi anulado, com novo julgamento realizado 13 anos depois, em 28 de maio de 2011.[9][10]

Outros acusados de envolvimento no suposto assassinato também foram julgados: o pai-de-santo Osvaldo Marcineiro, o pintor Vicente de Paula Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares. Os três foram condenados em 2004. Os outros acusados, Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli dos Santos, foram absolvidos em 2005.[11][12]

Com votação apertada (quatro votos contra três), no segundo julgamento Beatriz foi condenada a 21 anos e 4 meses de prisão. Em 17 de abril de 2016, o Tribunal de Justiça do Paraná concedeu perdão de pena para Beatriz Abagge.[13][14]

Reviravolta

Podcast Projeto Humanos

Em 2018 o Projeto Humanos, produzido pelo jornalista e professor universitário Ivan Mizanzuk, retratou o caso. Fruto de dois anos de investigação jornalística, a narrativa expôs as falhas na investigação, os hiatos e as perguntas não respondidas relativas ao crime, e trouxe à tona uma nova versão: os depoimentos colhidos pela Polícia Militar do Paraná foram "arrancados" sob tortura e os áudios e vídeos haviam sido editados. Isabela Boscov chamou a série de "impecável" e disse que "se em 1992 houvesse entre os investigadores do caso alguém com a clareza, o método, a perseverança e o rigor de Ivan Mizanzuk, provavelmente a gente saberia o que aconteceu com o Evandro e com o outro menino desaparecido cinquenta dias antes em Guaratuba, o Leandro Bossi".[4][15][16]

"Depois que eu era torturada, eu ia falar as coisas e falava 'mas eu não sei o que vocês querem que eu fale'. Eles falavam assim 'diga que você matou a criança' e eu falei 'tá'. Eu dizia o 'tá' antes para perceberem que eu estava inventando aquilo. 'Tá, eu matei a criança'. Eu não sabia nem que criança eles queriam que eu dissesse", disse Beatriz após as novas provas.[4]

O podcast tornou-se um dos mais baixados do Brasil em 2019, com mais de quatro milhões de acessos.[17]

Em 4 de janeiro de 2022, o governo do Paraná, representado pelo secretário estadual de Justiça, Trabalho e Família, Ney Leprevost, publicou um documento pedindo desculpas à Beatriz Abagge pelas torturas, chamadas de "sevícias indesculpáveis" no comunicado.[18]

Diógenes vira réu

Em julho de 2022, Diógenes virou réu por calúnia, após voltar a acusar os então absolvidos: "nós sabemos que foram eles que mataram e não foi só o Evandro, não foi só o Leandro [Bossi], eles confessaram outras crianças. (...) todos aqueles desaparecimentos, aqueles 28 casos que estão sumidos, do final dos anos 80, início dos anos 90, eles são casos de sumiços fora da curva, são casos diferentes. Sempre existiu desaparecimentos e sempre existe, até hoje. Mas aqueles eram fora da curva, eles tinham características especiais e nenhuma delas foi encontrada. Então, aquilo só acabou com a prisão deles. Em janeiro de 92 sumiu uma criança, em fevereiro sumiu duas e, em março, sumiram três. Em abril, sumiu o Evandro e depois nunca mais sumiu ninguém nessa característica que eu aponto fora da curva. Então, só isso aí, já é um motivo para ele [Secretário de Justiça Ney Leprevost] parar e pensar e não ficar fazendo essas conversinhas aí de pedir desculpas. Realmente isso é vergonhoso".[4]

Outras controvérsias

Declarações obtidas sob tortura

Defesa e Promotoria travaram longos embates sobre as confissões dos acusados, mas nos anos 1990 a tese de tortura foi derrubada por exames de corpo de delito feito e declarações das rés. No entanto, as torturas ficaram claras no podcast do jornalista Ivan Mizanzuk, que teve acesso a uma versão não editada da fita que contém a gravação da confissão dos acusados. As informações foram divulgadas no episódio 25 da terceira temporada do podcast Projeto Humanos[19] e o áudio da fita foi disponibilizado para download na enciclopédia digital do podcast.[7][20]

Dúvidas sobre a identidade do corpo encontrado

Também foram levantadas, diversas vezes, suspeitas de que o corpo enterrado no Cemitério Central de Guaratuba não seria o do menino Evandro Ramos Caetano e, segundo o zelador do cemitério de Guaratuba, Luiz Ferreira, o corpo não está enterrado no local qual o MP diz estar. No julgamento de 1998 as rés do caso chegaram a ser inocentadas porque o júri entendeu que não estava comprovado que o corpo era de Evandro. Três exames de DNA haviam sido feitos, sendo que os resultados dos dois primeiros haviam sido "inconclusivos". Porém, Ivan Mizanzuk falou ao Operação Policial que no laudo 2 já fica claro que os restos mortais pertenciam a Evandro, o que foi novamente confirmado no laudo 3.[3][21][17]

Também houve rumores de que o corpo havia sido colocado no caixão ainda na cena do crime, sem passar pela devida perícia, e logo em seguida enterrado, no entanto o pai do menino reconheceu objetos que estavam na cena e reconheceu a criança por meio de uma pequena marca de nascença nas costas.[7][4] A dentista do menino também reconheceu o corpo através do exame da arcada dentária, já que ela havia feito, pouco antes de sua morte, um procedimento "diferente" nos dentes de Evandro.[22]

Ao apresentar o caso em seu canal no YouTube,[23] a perita criminal Gigi Barreto chamou a atenção para a falta de cadeia de custódia das provas do caso, do fato do desaparecimento do menino já ser tratado inicialmente como sequestro - sendo que família de Evandro não era rica e que era preciso ter levantado quais órgãos estavam faltando no corpo para assim ligar, ou não, a um ritual de magia negra. A perita ainda questionou o motivo da família de Evandro ter investigado por conta própria, com comportamento inadequado do ex-investigador da Polícia Civil, Diógenes Caetano dos Santos Filho, primo do menino Evandro. Barreto também levantou a hipótese da cena do crime ter sido forjada. Sobre o fato do pai de santo ter previsto o crime, Gigi Barreto não achou incomum, já que existem casos que foram resolvidos com ajuda de médiuns.[24]

Sensacionalismo da imprensa

O modo como a imprensa paranaense tratou o caso, sobretudo os veículos populares e sensacionalistas, acusando sem provas os personagens investigados, foi completamente inadequado. Destaca-se que não há nenhuma prova cabal que ligue o terreiro de umbanda citado nos autos com a morte de Evandro. Em paralelo houve uma devassa na vida dos envolvidos, em comportamento inadequado da imprensa, que remete ao Caso Escola Base.[25]

Investigação rápida demais e vinculação equivocada da umbanda

À época do desaparecimento de Evandro, com um corpo de criança sendo encontrado uma semana depois, dois aspectos chamaram a atenção da opinião especializada: a rápida investigação, sem o devido zelo pericial (conforme exposto acima sobre a falta de cadeia de custódia), com imediato indiciamento dos envolvidos; e o fato dos investigadores e da imprensa terem relacionado a morte de uma criança com a umbanda, atrelando-a a suposto ritual de magia negra.

Caso ainda sem solução

Até julho de 2022 ainda há dúvidas sobre o que, exatamente, aconteceu e os responsáveis, se houve crime, ainda não foram apontados. Além disto, há um pedido de revisão criminal tramitando no Tribunal de Justiça do Paraná para a anulação do julgamento que condenou os cinco réus. [26]

O caso levou à produção de um podcast chamado O Caso Evandro, que depois virou uma série de TV produzida pelo Grupo Globo para o canal Globoplay. Também deu origem a dois livros: O Caso Evandro, de Ivan Mizanzuk,[27] e Malleus: relatos de tortura, injustiça e erro judiciário, de Celina e Beatriz Abagge.[28]

Ver também

Referências
  1. «'Caso Evandro': o que você precisa saber sobre o crime real que virou série». www.uol.com.br. Consultado em 28 de julho de 2022 
  2. «O caso Evandro - Projeto Humanos». Consultado em 28 de julho de 2022 
  3. a b c d e f g h CASO EVANDRO - OS 7 INOCENTES - INVESTIGAÇÃO CRIMINAL - AO VIVO, consultado em 28 de julho de 2022 
  4. a b c d e f g h «Caso Evandro: primo do garoto, Diógenes Caetano vira réu por calúnia contra acusados que foram torturados». G1. Consultado em 28 de julho de 2022 
  5. «Caso Leandro Bossi: veja linha do tempo, o que se sabe e o que falta esclarecer». G1. Consultado em 28 de julho de 2022 
  6. «'Caso Evandro', 'caso Escher', usurpação de funções e violações de direitos humanos». Consultor Jurídico. Consultado em 28 de julho de 2022 
  7. a b c O Caso Evandro (vídeo). Brasil: Globoplay. Consultado em 25 de maio de 2021 
  8. Defesa no caso Evandro quer convocar legista da Unicamp Portal Folha - Edição de 14 de abril de 1998
  9. Em julgamento de Beatriz Abagge, acusação nega tortura e defesa alega estupro Gazeta do Povo - Edição de 27 de maio de 2011
  10. CASO EVANDRO - TJ-PR rejeita invalidação de provas. Júri está mantido Ministério Público - PR
  11. Londrina, Folha de. «Acusados do caso Evandro são condenados». Folha de Londrina. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  12. «Segundo julgamento do caso Evandro é retomado no PR». Terra. Consultado em 28 de julho de 2022 
  13. Beatriz Abagge é condenada a 21 anos e quatro meses de prisão Arquivado em 31 de maio de 2011, no Wayback Machine. Portal O Estado do Paraná - Edição de 28 de maio de 2011
  14. «Tribunal de Justiça do PR concede perdão de pena para Beatriz Abagge». Paraná. 17 de junho de 2016 
  15. "O Caso Evandro": uma série documental impecável (vídeo). Brasil: Isabela Boscov (YouTube). Consultado em 17 de junho de 2021 
  16. «O caso Evandro - Projeto Humanos». Consultado em 28 de julho de 2022 
  17. a b «Podcast que conta a história do 'Caso Evandro' bate 4 milhões de downloads e vai virar série». G1. Rede Globo. 15 de junho de 2019. Consultado em 4 de outubro de 2019 
  18. «Caso Evandro: governo do PR pede desculpa a Beatriz Abagge por tortura». Metrópoles. Consultado em 15 de janeiro de 2022 
  19. «25 – Sete Segundos». Projeto Humanos. 10 de março de 2020. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  20. «EXTRAS EPISÓDIO 25». Projeto Humanos. 10 de março de 2020. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  21. «EXTRAS EPISÓDIO 31». Projeto Humanos. 6 de outubro de 2020. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  22. «29 – Dentes». Projeto Humanos. 22 de setembro de 2020. Consultado em 28 de julho de 2022 
  23. Alexandre Pequeno (26 de agosto de 2018). «Blogueira e perita criminal em Manaus relata suas experiências em vídeos no Youtube». A Crítica. Consultado em 1 de julho de 2020. Cópia arquivada em 1 de julho de 2020 
  24. Gigi Barreto, Freak TV (15 de maio de 2020). PERITA CRIMINAL REAGE AO CASO EVANDRO E AS BRUXAS DE GUARATUBA (vídeo). Brasil. Consultado em 1 de julho de 2020 
  25. FAVA, Andréa de Penteado. «O PODER PUNITIVO DA MÍDIA E A PONDERAÇÃO DE VALORES CONSTITUCIONAIS: UMA ANÁLISE DO CASO ESCOLA BASE». Universidade Cândido Mendes. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Cândido Mendes.: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp037871.pdf 
  26. CELEPAR. «NOTA PÚBLICA - Caso Evandro». Ministério Público do Estado do Paraná. Consultado em 30 de julho de 2022 
  27. «'Caso Evandro' leva morte brutal e misteriosa de criança para nova série e livro». O Tempo. Consultado em 16 de maio de 2021 
  28. «Malleus: relatos de tortura, injustiça e erro judiciário». G1. Consultado em 16 de maio de 2021 

Ligações externas